Causalidades 1
“O mundo é de quem não sente. A condição essencial para ser um homem prático é a ausência de sensibilidade. A qualidade principal na prática da vida é aquela qualidade que conduz à acção, isto é, a vontade. Ora há duas coisas que estorvam a acção – a sensibilidade e o pensamento analítico, que não é afinal, mais que o pensamento com sensibilidade. Toda a acção é, por sua natureza, a projecção da personalidade sobre o mundo externo, e como o mundo externo é em grande e principal parte composto por entes humanos, segue que essa projecção da personalidade é essencialmente o atravessarmo-nos no caminho alheio, o estorvar, ferir e esmagar os outros, conforme o nosso modo de agir.
Para agir é, pois, preciso que não nos afiguremos com facilidade as personalidades alheias, as suas dores e alegrias. Quem simpatiza pára. O homem de acção considera o mundo externo como composto exclusivamente de matéria inerte – ou inerte em si mesma, como uma pedra sobre que passa ou afasta do caminho; ou inerte como um ente humano que, porque não lhe pôde resistir, tanto faz que fosse homem como pedra, pois, como à pedra, ou se afastou ou se passou por cima.
O exemplo máximo do homem prático, porque reúne a extrema concentração da acção com a sua extrema importância, é a do estratégico. Toda a vida é guerra, e a batalha é, pois, a síntese da vida. Ora o estratégico é um homem que joga com vidas como o jogador de xadrez com peças do jogo. Que seria do estratégico se pensasse que cada lance do seu jogo põe noite em mil lares e mágoa em três mil corações? Que seria do mundo se fôssemos humanos? Se o homem sentisse deveras, não haveria civilização. A arte serve de fuga para a sensibilidade que a acção teve de esquecer. A arte é a Gata Borralheira, que ficou em casa porque teve que ser.
Todo o homem de acção é essencialmente animado e optimista porque quem não sente é feliz. Conhece-se um homem de acção por nunca estar mal disposto. Quem trabalha embora esteja mal disposto é um subsidiário de acção; pode ser na vida, na grande generalidade da vida, um guarda-livros, como eu sou na particularidade dela. O que não pode ser é um regente de coisas ou de homens. À regência pertence a insensibilidade. Governa quem é alegre porque para ser triste é preciso sentir.
O patrão Vasques fez hoje um negócio em que arruinou um indivíduo doente e a família. Enquanto fez o negócio esqueceu por completo que esse indivíduo existia, excepto como parte contrária comercial. Feito o negócio, veio-lhe a sensibilidade. Só depois, é claro, pois, se viesse antes, o negócio nunca se faria. ‘Tenho pena do tipo’, disse-me ele. “Vai ficar na miséria”. Depois, acendendo o charuto, acrescentou: “Em todo o caso, se ele precisar qualquer coisa de mim” – entendendo-se, qualquer esmola – “eu não esqueço que lhe devo um bom negócio e umas dezenas de contos.”
O patrão Vasques não é um bandido: é um homem de acção. O que perdeu o lance neste jogo pode, de facto, pois o patrão Vasques é um homem generoso, contar com a esmola dele no futuro.
Como o patrão Vasques são todos os homens de acção – chefes industriais e comerciais, políticos, homens de guerra, idealistas religiosos e sociais, grandes poetas e grandes artistas, mulheres formosas, crianças que fazem o que querem. Manda quem não sente. Vence quem pensa só o que precisa para vencer. O resto, que é a vaga humanidade geral, amorfa, sensível, imaginativa e frágil, é não mais que o pano de fundo contra o qual se destacam estas figuras de cena até que a peça de fantoches acabe, o fundo-chato de quadrados sobre o qual se erguem as peças de xadrez até que as guarde o Grande Jogador que, iludindo-se com uma dupla personalidade, joga, entretendo-se, sempre contra si mesmo.”
Bernardo Soares (Fernando Pessoa), In Livro do Desassossego
Espantos 2

…
“Só a neve
conhece os gestos
com que se tecem os milagres”
Luís Falcão, In Uma Exigência de Infinito
2020
Para 2020
(e sempre):
“Ainda mais escuta…”
desde dentro e do real.
Com Humildade, Pureza, Integridade.
Cooperação.
Que as nossas lutas para sermos não se sobreponham ao que os outros são, ou possam vir a ser.
Que o medo e a nossa ânsia por sucesso pessoal, gerados pelas (ainda) necessidades primárias de sobrevivência e validação, não nos distanciem uns dos outros (de nós próprios) e nos ofusquem a Humanidade.
Reconhecer, Honrar e Celebrar os nossos Dons,
os meus e os dos outros.
Abertos, livres de preconceito.
Leais, em todas as acções.
Desde as intenções.
Sobretudo estes os votos e a esperança.
Para todos nós.
Om Point
*

ainda mais escuta…
Sem porquê
“Sem porquê
A rosa é sem porquê; floresce porque floresce,
Não cuida de si própria, não pergunta se a vemos.”
Angelus Silesius
Espantos 1
Bendito o futuro onde nos espantaremos por não saber o que pensar
Creio que nas próximas décadas, e nas que se lhes seguirão, e ainda naquelas que virão, por muitos milénios, a humanidade saberá o que pensar. Não faço parte do exclusivo clube dos pessimistas históricos; os discursos sobre a decadência aborrecem-me; assim como, confesso, os otimismos me desconcertam. Os fios com que se cose a história não são descendentes nem ascendentes: são apenas fios; aqueles que se encontram na vida de cada tempo e cada geração. E a coisa mais importante é que os fios resistem de modos infinitos, tanto nas catástrofes como nos sucessos (e sabe Deus quanto é difícil renascer depois de uns e de outros!). Por isso creio que a humanidade do futuro saberá certamente o que pensar. Não é difícil imaginar que os saberes, mesmo em novos contextos, se desenvolverão e que em muitos casos representarão para nós uma surpresa total, mais não seja por os termos tido durante tanto tempo debaixo do nariz e não os termos aproveitado. Talvez não tivesse chegado ainda o seu momento. Ou talvez tivesse e nós o tenhamos clamorosamente falhado, facto que deveremos admitir. Não é difícil conjeturar que surgirão novas gramáticas para compreender o mundo e intervir nele, e que algumas nos confirmarão no que fomos, enquanto outras se oporão, reinventando radicalmente métodos e propósitos.
Mas no fundo, que importa? Serve pouco agarrarmo-nos aos nossos pontos de chegada, como se fossem os únicos legítimos, quando deveremos começar antes de tudo com a bênção ao futuro que nos declara superados. Bendito o futuro que rirá de nós porque confundimos tudo: uma mudança com a viagem, uma aproximação com o encontro, a posse das coisas com o seu uso, a acumulação de bens com o seu saudável usufruto. Bendito o futuro que nos criticará por termos produzido tanto e distribuído tão mal, por termos andado na Lua e depois resistir tanto, mas tanto, a chegar ao conhecimento do nosso próprio coração. Bendito o futuro em que as tecnologias deixarão de ser um fetiche nas mãos do mercado, como já acontece em larga medida, e se tornarão um instrumento melhor para a vida de todos, como aconteceu, por exemplo, com o arado ou a roda. Bendito o futuro que nos inspirará estilos de vida mais essenciais, mais atentos aos outros seres humanos, mas também a todas as outras criaturas que connosco partilham esta misteriosa aventura, e das quais sabemos tão pouco. O futuro saberá encontrar o espaço e a expressão do seu pensar.
Há uma coisa, porém, que supera todo outro desejo: que a humanidade que virá habitar aquele que para nós é o futuro se dê conta, muitas vezes, de não saber o que pensar. Que se deixe desconcertar pelo inexplicável esplendor de cada aurora; que permaneça sem palavras diante do mar, como aqueles que o viram pela primeira vez; que se sinta irresistivelmente atraída pelas variações das cores, dos volumes e dos odores da paisagem diurna e noturna; que se sinta atravessada por um frémito ao primeiro contacto com a água; que mantenha a capacidade de se espantar diante do modo como o vento leva para longe as nossas vozes felizes; que olhe do mesmo modo indefeso a chuva, os campos alagados em silêncio, as coisas mais pequenas e vastas, o tráfego das nuvens, a disseminação das papoilas que nos campos se assemelham a palavras que sonham. Desejo ardentemente que a humanidade do futuro saboreie o embaraço por aquilo que permanece inacabado, não por insuficiência mas por excesso, e não se apresse a catalogar, a descrever ou aprisionar. Que o seu modo de compreensão seja uma outra maneira de manter intacto (ou até de o amplificar) o espanto.
José Tolentino Mendonça, In Avvenire
[Tradução de Rui Jorge Martins em http://www.snpcultura.org]
Uma pequenina luz
Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta
une toute petite lumière
just a little light
una piccola… em todas as línguas do mundo
uma pequena luz bruxuleante
brilhando incerta mas brilhando
aqui no meio de nós
entre o bafo quente da multidão
a ventania dos cerros e a brisa dos mares
e o sopro azedo dos que a não vêem
só a advinham e raivosamente assopram.
Uma pequena luz
que vacila exacta
que bruxuleia firme
que não ilumina apenas brilha.
Chamaram-lhe voz ouviram-na e é muda.
Muda como a exactidão como a firmeza
como a justiça
Brilhando indefectível.
Silenciosa não crepita
não consome não custa dinheiro.
Não é ela que custa dinheiro.
Não aquece também os que de frio se juntam.
Não ilumina também os rostos que se curvam.
Apenas brilha bruxuleia ondeia
indefectível próxima dourada.
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.
Desde sempre ou desde nunca para sempre ou não:
brilha.
Uma pequenina luz bruxuleante e muda
Como a exactidão como a firmeza
como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
no meio de nós.
Brilha.
Jorge de Sena